Baltasar
O homem que foi picado por uma serpente de olhos negros deitou-se à sombra do único arbusto que havia no deserto. Ali, conforme está escrito no Livro que tem o seu nome, não encontrou nenhuma esperança que pudesse modificar a última página da sua vida, pois ele sabia que o anjo em forma de corvo, paciente e obstinado, em breve o encontraria para levá-lo ao mais alto Céu. A sombra no deserto agora era a sua casa, a última, e ela tinha o corpo e a forma de um lugar, tão distante como a última estrela do mundo, onde a saudade pôde, enfim, encontrar o perdão por todos os enganos. Enquanto rezava ao Pai Celestial, o homem que foi picado por uma serpente de olhos negros recolhia no tempo os fragmentos da sua memória. Dos primeiros anos da infância voltou a encontrar um rio de água verdes que, na alucinação do veneno, agora parecia correr ao seu lado. E lembrou quando ajoelhou-se diante da montanha para ler o Livro Sagrado, onde aprendeu a recitar em voz alta as preces que agora lhe traziam o doce alento. E mais uma vez ouviu dentro de si a sentença de morte que na noite das Cinco Luas decretou: “aqueles que eu amei e que por tua inveja perdi, acenderam em mim a vingança pelo sangue e dela não haverá perdão”. Enquanto a noite se aproximava, o homem pediu mais uma vez ao Altíssimo que ajudasse o anjo em forma de corvo a encontrá-lo, pois queria respirar pela última vez sobre o encanto que amor trazia sobre seus olhos. E foi na última luz do dia que ele viu a grande torre diante de si, a Biblioteca que é o universo e a vida de todos. Assim está escrito no Livro que tem o seu nome, no Corredor das Oliveiras: no crepúsculo, antes do anjo da morte encontrá-lo, o homem que foi picado por uma serpente de olhos negros, aturdido pela saudade, a ternura e o perdão, seria um dos poucos a ver em vida a grande torre da Biblioteca. Porém, e este é o grande mistério desta história, não está registrado no Livro que tem o seu nome um fato inusitado: o homem não morreu sozinho. Antes do anjo da morte encontrá-lo, um cão surgiu no deserto e deitou-se ao seu lado, solidário ao sofrimento e à agonia. Quando a Estrela da Manhã surgiu no céu, um corvo extenuado pousou sobre a cabeça do homem, mas ele ainda conseguiu ler o que estava escrito na coleira do cão: “eu sou Baltasar”. (in: Arameus e Betânia: o Livro do Mundo)